domingo, 3 de abril de 2011

O Ciclo Disciplinar Integral no Capitalismo Contemporâneo

Cleito Pereira dos Santos

Ao instaurar a produção flexibilizada e o trabalho em equipe, o toyotismo redefine as formas de controle social no trabalho e inaugura um novo ciclo disciplinar caracterizado pela integral absorção das capacidades intelectuais do trabalhador. O disciplinamento da força de trabalho ganha novos contornos através da inauguração do trabalho em equipe, da automatização e da robotização do processo de trabalho. O propósito empresarial de intensificar o trabalho aumentando o ritmo do mesmo é colocado em evidência através da emergência das tecnologias disciplinares típicas do toyotismo.
Segundo Gaudemar (1991), existe um conjunto de mecanismos que corroboram na adequação da força de trabalho aos objetivos do capital. O código empresarial particular, ou regulamento interno, representa uma modalidade de exercício da disciplina que aliado com o contrato de trabalho, ou acordo coletivo, codificam a subordinação do trabalhador aos objetivos empresariais. Assim, cada fase de desenvolvimento do capitalismo corresponde uma forma particular de disciplinamento ou ciclos disciplinares, que expressam o poder do capitalista sobre a força de trabalho. Nesse sentido, quando o trabalhador vende sua força de trabalho ele também está vendendo a sua subordinação ao capitalista.
Esta maneira de disciplinar a força de trabalho já estava presente no fordismo, mas é no toyotismo que a mesma assume formas mais definidas e intensas de subordinação ao capital. Embora estivesse já presente no fordismo, o código empresarial, o contrato de trabalho, designa agora a forma atual da dominação: exigência de plena adesão dos trabalhadores aos objetivos empresariais, criação de expectativas voltadas para a superação crescente das metas estabelecidas, pressão através do uso do fantasma do desemprego para forçar os trabalhadores a se integrarem aos objetivos das empresas.
Ainda nesse sentido, Lima (1996) enfatiza os tipos de disciplinas e controles no processo de trabalho característicos do capitalismo atual, demonstrando que a emergência do ciclo disciplinar integral, ou toyotista, estaria fundamentado nas ideologias administrativas preconizadas pelos gurus dos recursos humanos e da gestão de empresas. Assim, nos anos 1990 uma gama de “teorias” anunciava o caminho para o sucesso das empresas tendo em vista a aplicação de métodos de administração e controle que procuravam captar as capacidades intelectuais-cognitivas dos trabalhadores. No geral, os gurus da gestão de recursos humanos dão ênfase ao poder das empresas e à subordinação dos trabalhadores.
Harvey (2003) descreve o padrão de acumulação relacionando-o com o advento do modo de regulação tanto produtiva quanto da vida social na sua totalidade. Neste caso, o regime de produção impõe para o conjunto da sociedade e da força de trabalho uma forma de vida associada com a racionalidade do sistema de produção de mercadorias.
Para Gaudemar (1991) isto corresponde aos ciclos disciplinares específicos de cada período do processo de produção e de trabalho. Em cada momento histórico o capital impõe determinadas tecnologias disciplinares e de controle no sentido de adequar a força de trabalho a uma gama de princípios e normas codificadas em regulamentos que atuam de maneira a impor um tipo de comportamento adequado à reprodução do capital.
Daí a assertiva de Gaudemar (1991) ao afirmar que o trabalhador vende, além da força de trabalho, sua submissão ao capital. O capitalista compra a subordinação do trabalhador a determinadas normas de comportamento e, consequentemente, ao poder empresarial. Daí a tentativa recorrente em utilizar ao máximo a capacidade intelectual, o saber - fazer, as aptidões da força de trabalho. A intensificação do trabalho aparece, assim, como um modo inteiramente desejável e racional na perspectiva do capitalista.
A partir do momento que há esgotamento no regime de acumulação, ocorre também crise das tecnologias disciplinares que não se adequam aos propósitos de reprodução do capital. Dessa forma, novas tecnologias disciplinares entram em cena reorganizando as formas de trabalho codificadas nas normas e regulamentos redesenhados pelas empresas. A autoridade do capitalista, portanto, estará mantida e segue intocável o domínio do capital e a subordinação dos trabalhadores.
Sennett (2001; 2006) analisando a cultura do novo capitalismo enfoca as mudanças operadas no plano da organização e da cultura no que diz respeito ao processo de trabalho e às novas formas de enquadramento disciplinar do trabalhador. A insegurança e a precariedade das condições de trabalho colocam para o trabalhador a opção de submeter aos padrões organizacionais e à flexibilidade do trabalho.
Nessa perspectiva, ressurgem formas de trabalho tidas como ultrapassadas no capitalismo, como o trabalho em domicílio e as formas precárias de subsunção do trabalho ao capital. (Harvey, 2003). Contrato temporário, part-time, dentre tantas outras, são incorporadas como mecanismo de controle e disciplina do trabalho. O ciclo disciplinar do capital passa hoje pela inserção de amplas parcelas de trabalhadores na precariedade. Seja ela ligada ao mercado formal, seja ao mercado informal de trabalho.
No processo de trabalho as empresas e os capitalistas buscam integrar e/ou cooptar a força de trabalho utilizando para isso de diversos mecanismos de convencimento. As escolas de formação, desde as escolas do Estado até as chamadas universidades corporativas e as demais instituições, preparam a força de trabalho dentro dos novos padrões empresariais de dominação e subordinação no trabalho. Nesse sentido, a empresa capitalista reduz parte dos custos com a formação e disciplinamento da força de trabalho, uma vez que a mesma chega à empresa com a disciplina e os princípios adequados aos objetivos empresariais e capitalistas.
Na expressão de Heloani (2003), as novas formas de autocoação procuram captar a subjetividade do trabalhador substituindo ordens por regras e fazendo com que o indivíduo se adapte aos objetivos da empresa. Assim, os mecanismos de controle passam a ser mais elaborados e sofisticados à medida que apresentam sistemas de valores referentes ao universo de trabalho no interior das empresas e os indivíduos devem submeter-se a essa “gramática dirigida para a identificação com os valores da empresa, implicando a subordinação do trabalho ao capital, e na qual a linguagem desempenha papel fundamental.” (Heloani, 2003: 107).
O sistema disciplinar e o controle do processo de trabalho interagem com as condições de oferta da força de trabalho. Em outras palavras, o sistema de manipulação da subjetividade dos trabalhadores tem um aliado de peso: a existência de ampla oferta de força de trabalho que possibilita às empresas e aos capitalistas escolherem o trabalhador ideal aos propósitos do capital. Além do mais, a ampla oferta de força de trabalho pressiona os trabalhadores a aceitarem as condições impostas pelo poder empresarial e faz com que aqueles que se encontram desempregados sejam compelidos ao modo disciplinar do padrão de acumulação vigente.
O mercado de trabalho atua como um regulador em potencial na formulação de um contingente de trabalhadores aptos a aceitarem as condições e as regras do jogo das empresas e do capital. A dominação e a subordinação do trabalho ao capital iniciam, portanto, antes do trabalhador chegar à fábrica ou à empresa capitalista. O poder dos capitalistas se estende para além dos espaços de trabalho.
Nessa perspectiva, o que Gaudemar (1991) chama de ciclo disciplinar representa a formação e implementação das técnicas de dominação e controle do processo de trabalho. Em cada momento específico da acumulação capitalista, novas formas de controle são criadas para dar suporte ao domínio pleno do capitalista na reprodução do capital. A lógica da acumulação impõe a necessidade de técnicas específicas fundamentais para a extração do mais-valor.
O toyotismo corresponde exatamente à emergência da fase disciplinar e de controle integrais sobre o trabalho inaugurada após o esgotamento do taylorismo-fordismo (fordismo-keynesianismo). Seguindo essa noção, a disciplina enquanto codificação de regras, ordens e procedimentos é redefinida em termos de adequação do trabalho às mudanças realizadas no contexto da acumulação de capital na era da flexibilização do trabalho. Daí a euforia preconizada pelos gestores e administradores a partir dos anos 1980 ao anunciar as mudanças do capitalismo como a fase mais espetacular da gestão e organização do trabalho e das empresas. Em suma, a panacéia ideológica em voga representa a reformulação dos princípios básicos da extração do mais-valor a partir da redefinição das formas de controle, disciplina e subordinação no trabalho.
Para Mendoza (1991), disciplina pode ser definida como a forma de codificação buscando obter domínio sobre o processo produtivo e de trabalho. Nesse sentido, a disciplina representa uma estratégia reguladora do comportamento dos trabalhadores visando a adequação produtiva da força de trabalho para a produção e reprodução do capital. Trata-se de uma estratégia múltipla e complexa dirigida para tal objetivo.
O ciclo disciplinar não implica a existência de uma maneira única de disciplina. A noção de ciclo refere ao modo como se constitui, domina e esgota uma determinada forma de impor aos trabalhadores um código de trabalho e de subordinação em cada período da acumulação capitalista. Diz respeito a um período de adequação e, posteriormente, de inflexão disciplinar no regime de acumulação, conduzindo ao aparecimento de outras formas disciplinares propícias às redefinições da acumulação capitalista.
Isto implica na compreensão que a disciplina varia no tempo e no espaço de acordo com os ciclos do capital. As variações nas formas disciplinares devem ser observadas em consonância com os ciclos de produção e reprodução do capital.
O toyotismo ampliou o leque do poder do capital constituindo técnicas de disciplina e controle da força de trabalho que caracterizam o regime de acumulação flexível, na definição de Harvey (2003). As mudanças no disciplinamento da força de trabalho implicaram a codificação de procedimentos e regras típicas da acumulação atual. Em certo sentido, poderíamos dizer que o toyotismo inaugura a subsunção real do trabalho ao capital de forma que a disciplina se apresenta de maneira mais intensa e a exigência de interiorização dos mecanismos de controle assume proporções consideráveis. .
A codificação e a normatização de procedimentos visam regular tanto o uso de objetos e equipamentos quanto configurar o poder do capital sobre a divisão do trabalho hierarquicamente definida. Nessa perspectiva, a adoção de tecnologias tanto microeletrônica quanto de gestão dos recursos humanos está associada à adequação ao novo ciclo disciplinar integral do toyotismo.
Desse modo, defino como ciclo disciplinar integral as práticas fundamentadas no modelo toyotista de organização do trabalho e de internalização dos mecanismos de controle assentados na subsunção real do trabalho ao capital. As práticas decorrentes de tal modelo de subordinação revelam as tentativas de extrair, na integralidade, as capacidades intelectuais da força de trabalho e, consequentemente, a intensificação do trabalho visando a redução de custos e o aumento da produtividade do trabalhador.
A qualificação aparece como forma de extrair o máximo da capacidade intelectual do trabalhador e como discurso de disciplinamento para a adoção dos padrões comportamentais necessários ao fluxo de extração do mais-valor. Nesse sentido, o capital designa, a cada momento, os rumos da corrente disciplinar e do controle do trabalho nas empresas através da instauração de normas e procedimentos capazes de garantir a valorização do capital no contexto do padrão toyotista de acumulação. O discurso atual enfatiza a necessidade de qualificação do trabalhador e do desenvolvimento das capacidades e habilidades voltadas para a atuação eficaz no âmbito da atividade produtiva. De acordo com Heloani (2003), a adoção de tecnologias microeletrônicas provocou a reunificação dos aspectos manuais e intelectuais do trabalho.
Em certo sentido, a tecnologia possibilitou a junção prática de determinados conhecimentos e saberes do trabalhador oferecendo ao capital uma ampla margem de manobra para a intensificação do ritmo e da exploração do trabalho. Portanto, as virtudes dos trabalhadores, suas capacidades intelectuais e suas experiências, são incorporadas pelo capital como um mecanismo a mais na realização da valorização do capital.
O reordenamento da subjetividade dos trabalhadores, sob a ótica toyotista, demonstra que as transformações nas técnicas disciplinares e de controle operam no sentido da adequação da força de trabalho no processo de valorização do capital. As técnicas de controle e disciplina, expressas nos regulamentos, na legislação e nos contratos de trabalho, dão significado à lógica de reprodução do capital no padrão de acumulação dominante de cada época. Os ciclos disciplinares expressam as formas encontradas pelos capitalistas para gerir de maneira integral suas atividades, subordinando a força de trabalho a determinados mecanismos de controle e estabelecendo o poder empresarial nos espaços de trabalho.

Referências Bibliográficas

Antunes, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.
Bernardo, João. Democracia Totalitária: teoria e prática da empresa soberana. São Paulo: Cortez Editora, 2004.
Gaudemar, Jean-Paul. El Orden y La Producción: nacimiento y formas de la disciplina de fábrica. Madrid: Trotta, 1991.
Harvey, David. Condição Pós-Moderna. 13ª. Edição. São Paulo: Loyola, 2003.
Heloani, Roberto. Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Atlas, 2003.
Lima, Maria Elizabeth Antunes. Os Equívocos da Excelência: as novas formas de sedução na empresa. Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.
Marx, Karl. O Capital. Livro 1, Vol. 1/2. t. 1 e 2. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
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Mendoza, Carlos Alberto Castillo. Estudio Introductorio. In.: Gaudemar, Jean-Paul. El Orden y La Producción: nacimiento y formas de la disciplina de fábrica. Madrid: Trotta, 1991. pp.09-32.
Pignon, Dominique e Querzola, Jean. “Ditadura e Democracia na Produção”. In. Gorz, André. (org.). Crítica da Divisão do Trabalho. 2ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Sennett, Richard. A Corrosão do Caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 5ª. Edição. Rio de Janeiro: Record, 2001.